sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Tudo.

Não sei o como ou o porquê. Admitidamente, renego o controlo ao instinto voraz que se me apresenta como eu neste momento, um instinto duro e bruto de querer. A fera subsiste perante o teu nome, apenas para ser despertada de seguida pela sugestão do teu corpo. E não falo só na falácia tão certa do teu tom de pele, no pecado incessante gerado pela cornucópia dos teus movimentos ou no ritmo pensativo e rápido com que voas. Vinga-se em mim a raiva apaixonada de não conseguir dormir a cada noite senão reconstruir ao meu lado, átomo por átomo, a tua imagem quente e défonse a adormecer, a fúria embevecida de sentir os meus músculos tensos como cabedal novo, suado, esticado, quando a palma da minha mão não se enterlaça com a tua num novelo de derme límpida, definida pela força quente de sangue e de certezas. E um aperto único que não definha, não morre nem se arrasta. E por isso, não subsiste a fera, mas acorda com novo alento, e não mais fere nem magoa, apenas cativa. A fera é negra em tons de pastel, a fera é muda mas sente. A fera tem calor, a fera não fere. A fera arranha a pedra e o ferro, a fera não tem medo. A fera tem asas, a fera sabe voar, a fera nunca pousa. A fera foi cativada.

Eu sou teu.

Estou apaixonado por ti. Raridade neste espaço literário, frase curta e sem sentido poético, alimentada apenas pela força da sintaxe e pela importância que a minha língua e peito lhe dão. Então deixa-me estar apaixonado e sorri comigo, porque há música nuclear a ser feita o vertigo impetuoso das nossas vidas em movimento, que num ponto inerte mas em constante dinamismo, suave, partilhado, surge a singularidade que nos tornámos. Seres em movimento, únicos por si só e únicos quando um só, criaturas dispersas e díspares em pleno salto sobre a linha ténue e mucosa da água social e espiritualmente turva, crianças sem dono. E reflectimos a visibilidade inaudita de quem nos enfrenta e escurece, contra a luz de uma madrugada que ambos ganhámos o direito a ter, ver e observar. E eu fico aqui, com o meu queixo cansado apoiado no teu ombro, na esperança de ver o brilho breve de um laivo de sol alaranjado, sobre o ritmo paciente dos teus saltos no basolto que suporta a ravina, e o arrastar lento mas certo de dois corpos em direcção a um fim de mundo com sabor a laranja em açucar. E faço-te viajar de novo, através do Mediterrâneo quente passando pela costa grega. Daí a fera se concentra e se diluí em gotículas inertes de material apaixonado, aguardando sentada sobre a paciência, garra que raramente possui em tempo de solidão. Mas este não é um tempo de solidão. E a fera sabe algo. A singularidade que tu és surgiu, e colocou-se em pleno voou picado ao meu lado. A presa era o mundo. E ambos tínhamos fome.

Eu sou teu.

Houve um código, um sinal temporal, uma certeza incerta que nos deu lágrimas hoje. Um rasto de migalhas cósmico, uma marca longa e intemporal, a demonstração de algo tão forte que resistiu ao teste mais longo e tenebroso, a séculos de guerras e corações despedaçados, á queda da primeira civilização, ao crescimento da cultura e da arte, aos gigantes de pedra que o tempo, a chuva e o vento rasgou como papel, ao nascimento de reis e profetas, ao desaparecimento de deuses e deusas, ao cair dos templos antigos, ao surgir das novas ideias, ao esmorecimento do homem e da mulher num marasmo infinito ao qual se cedem as monótonas relações, preservadas no formol parado da rotina e na resina escura da repetição espiritual. A tudo resistiu um amor (e digo este nome de peito cheio, sem receios dos quais possa ser acusado), uma migalha de semente de gente pequena, a germinarem na terra crestada. Mas não uma terra qualquer, mas uma terra preparada, preparada pelos passos de amantes impacientes, de sangue derramado e das pedras de Avalon e Londres, num castelo de nuvens e sonhos de gente grande, até ao cimento das cidades e ao alcatrão quente e fumegante que arrasta o mundo lentamente, á volta de si próprio, sobre a efíge de um coração no dia 14 de Fevereiro e do preço das rosas nas floristas, que gordas e suadas, podam os espinhos com as unhas grudadas. Mas não. Crescemos o suficiente para observar o caule a tocar no primeiro pingo de cada chuva de Outubro, e os nossos corpos como seiva quente, sem destino na irrigação constante e violenta do que somos cá dentro. Um código, um código único, um código nosso, um código que atravessou tempo e o Homem, para nos encontrarmos. Um código em anagramas que pintámos a sonhar, caídos sobre os nossos cotovelos, vinte mundos aparte, a pensar para fora da janela num toque de vidro frio e onde é que se podia verter ele, enquanto a ingenuidade ainda era parte do currículo. E o código surgiu da nossa respiração na janela, encostados sonolentos ao vidro, escrito sobre um sonho acordado e duas folhas de papel que nunca chegaram para dizer tudo. Escrito com o vapor do nosso peito a limão numa janela distante. E o que disse ele no final?

Disse que eu sou teu.

E eu assenti com ele, pendente de cabeça e alma forte, e olhei para os pulsos. E o teu amor não me colocou grilhões de ferro nem uma esfera nos pés cansados. Deste-me um pedaço de areia junto a um mar só nosso, e garanto-te que é de lá que sai esta missiva talvez morosa e longa, mas uma leitura ritmada e pausada para os momentos certos. E por isso, a fera acorda em mim, revira-se. Não estás aqui, e ela ruge. Ruge numa voz de fado pingado de água erguida, de saudade arranhada na carne dos meus pulmões, que me arde na garganta aquecida pelas gotas da tua saliva que me penetram o corpo. E dói-me a pele sem a pressão dos teus dedos nos meus braços, sem o impacto sónico da tua palma no meu ombro, a dor intensa no meu ventre que se contrai sem ti. E quero apenas que o saibas. Que esperarei até ao próximo momento de proximidade violenta e certa que se gera na nossa cumplicidade de crianças grandes.
Que esperarei até a um amanhã cadenciado aos nossos corpos, vergado aos nossos caprichos, submetido aos nossos desejos. Porque é assim que se vive a vida, com um gosto na língua a tudo que vale a pena.

Porque eu sou teu. E tu és minha. Quero-te.

Ages.

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