segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Fogo na Bruma

Á baça e vâ luz de uma pouco companheira lâmpada eléctrica, vigio os meus gestos com uma insipidez invulgar. Preparo o rídiculo da caneta contra o plástico aquecido da estrutura á minha frente, um gargantua de metal pungente e de cheiro a suor, marcado já certamente por laivos de fúria e algum prazer sustenido. Nunca fui crente convicto nas capacidades suspensas de algo que não tenha nascido da seiva e casca torcida no branco do papiro moderno, e sempre preferi ter o papel debaixo da minha palma suada de alcóol. Mas desta vez, pregam-me uma partida em tons de cinzento malva e com sabor a vidro, e empurram-me a face crestada de sol contra a túnica empregue pelos ponteiros parados do relógio. Sou face suiça de marfim, mas não me apresso. Quero que seja perfeito.

Porque escrevo? Digo-vos porquê. Porque me rendo á corporalidade do verbo e do adjectivo, como cedo ao peso incessante e pendular da frase construída, pensada, sentida, verbalizada, como mulher nua, despida, insana. E daí, puxando a infantilidade demarcada pelos sulcos nas minhas unhas, decidi dar um pouco mais de vida ébria ás palavras que os meus músculos lentamente aprenderam a amar, ao custo de ácido lácteo e solas gastas de caminhar. Que alguém me culpe e amaldiçoe por ser fraco ao ponto de me deixar seduzir pela prosa cuidada e pela trepidação pouco suave, como borracha quente sobre graveto e areia solta, da poesia agressiva e violenta, da que fere, magoa, devora, fornica. A palavra proibida torna-se vocábulo nos meus lábios, lascividade suada e intensa sem cera de velas, nascida da união profana do desejo de dizer e da latência imprópria de segurar o que não devo, vertida em mim de forma quente e aguda. E sou ouro líquido em veias de gigante cansado, e a minha escrita é a ferida de legionário romano por onde verto, fujo, escapo, vivo, voou, e sou livre. Abraçem-me nos meus mantos e suduários de linho e ouro e carvão dilatado, sou profeta da poesia que ama, ainda amante da Brasileira e do ferro curvo das cadeiras do Nicola!

Por isso, dêem-me os vossos pobres de espírito e os cansados de alma, as vossas massas agonizantes em movimento com desejo de grilhões de ferro, o vosso lixo infame sem essência nas costas imóveis e enevoadas da consciência parada dos senhores do cimento e das ruas de cal, enviem-me os vossos desabrigados á chuva mais fria, os húmidos cansados da tempestade de metade de céu de mundo, que erguerei o meu fogo sobre as frontes que choram para cuspir na face da normalidade e da monotonia, e permanecerei nos ombros de gigantes para arranhar a face suada e vermelha dos que já desistiram.

Deixem-me as minhas águas furtadas sobre o céu chuvoso da minha Lisboa, com vinho para me aquecer o corpo escuro e três penas de corvo e gaivota portuguesa para me deitar a contar a chuva. E que me incomodem os poros com as carícias do mundo quente, porque não temo o frio nem o gelo. Confio na fornalha que arde cá dentro, em ferro suado e ferrugento trabalhado e gasto do uso, forte nas fundações de madeira pombalina que me encerram a testa. E não descansarei mais, porque perco demasiado tempo em que poderia estar vivo. E na cornucópia incessante dos dias, sou fera e dragão, e santo de lança em punha contra mandíbulas que ainda me querem mas não me desejam. E o mundo é meu. Todo meu.

Há bruma no mundo, e o meu fogo arde no centro dela. Quero lenha.

A ouvir - [Mars Volta - Goliath]

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